Uma vida aparentemente perfeita 

Nasci numa geração em que os likes e o número de seguidores eram perguntados primeiro que o nome próprio. Aos catorze anos, quando a internet ainda parecia um território novo e inexplorado para muitos, eu já estava lá, partilhando a minha vida através vídeos simples e espontâneos, apenas eu e minha câmara de filmar. Comecei no YouTube, depois migrei para o Instagram e, mais tarde, fiz o meu nome destacar-se no TikTok. A minha personalidade cativante e o conteúdo descontraído que fazia rapidamente conquistou a atenção de milhares de jovens como eu, que me admiravam pela minha simplicidade e autenticidade.

Aos poucos, o número de seguidores nas minhas redes sociais foi disparando, e rapidamente passei de uma rapariga comum para uma verdadeira celebridade do digital. Marcas conceituadas, convites para eventos exclusivos, viagens por todo o mundo começaram a surgir de forma regular. A minha vida parecia, aos olhos de quem me observava, um conto de fadas moderno, onde tudo era perfeito. As pessoas viam-me como alguém inalcançável, com uma vida de sonho, e, talvez, por vezes, eu também acreditasse nisso.

Com o passar dos anos, o que era para ser uma simples forma de partilhar a minha vida começou a fazer parte da minha identidade. Os likes e os comentários passaram a ser a minha maior fonte de validação, como se o número de seguidores fosse uma medida do meu próprio valor. As opiniões dos outros tornaram-se o reflexo da minha autoestima e ditavam as minhas ações. Aos poucos, fui-me afastando da realidade, mergulhando cada vez mais num mundo que só existia do outro lado das telas. Os telefonemas da minha mãe e as mensagens do meu irmão, com quem sempre tive uma ligação forte, começaram a ser ignoradas, tal como os almoços de domingo com a família e as conversas simples, que foram substituídas por fotos perfeitas e vídeos cuidadosamente ensaiados com as minhas amigas.

Uma noite, numa festa com elas, onde a bebida serviu de desculpa para as conversas se descontrolarem, eu não sabia que, no meio da diversão, uma das minhas amigas tinha filmado uma conversa privada que tive com ela. Nela, eu proferia palavras desagradáveis sobre uma outra criadora de conteúdos e, sem que eu soubesse, o vídeo foi partilhado na internet para toda a gente assistir.

No dia seguinte, acordei com o telemóvel a vibrar incessantemente, mas não eram mensagens de carinho, como era habitual. Eram críticas, ataques, seguidores a abandonar-me e a expressar toda a sua indignação. “Perdeste a nossa confiança”, dizia uma mensagem. “Sempre foste uma falsa, só que agora todos sabemos.” O pânico instalou-se. O meu coração batia forte enquanto procurava entender o que se passava. Foi então que abri o TikTok e vi o vídeo. Senti que o chão estava a escorregar sob os meus pés. Como poderia uma pessoa que eu considerava amiga ter-me feito tal coisa? Como foi possível? A vergonha tomou conta de mim, e uma sensação de traição brutal consumiu-me os pensamentos.

Mas, antes que a angústia me tomasse por completo, o telefone tocou. Era a minha mãe. Hesitei. Era difícil atender, não sabia como começar, mas queria muito o colo dela. Com as lágrimas a caírem-me pela cara, atendi. A minha mãe, ao ouvir o meu choro, não precisou de mais palavras para entender a dor que eu sentia e sem perder tempo, fez-se à estrada, rumo à minha casa.

Quando chegou, não houve necessidade de longos discursos. A minha mãe abraçou-me, com a força e o amor de quem sempre me protegera, e ficou ali, em silêncio, até que as minhas lágrimas se acalmassem. Só então, ela falou, com a calma de quem sabe que está a guiar a filha para um lugar melhor: “Filha, sei que tens um bom coração, mas há muito tempo que estás perdida. Estás a dar valor ao que não importa. Estás a afastar-te de quem te ama, de quem realmente te conhece. O teu irmão, por exemplo, está tão distante de ti. O que aconteceu não apaga o teu valor, mas é a altura certa para reveres as tuas prioridades.”

Aquelas palavras foram difíceis de ouvir, mas eu sabia que a minha mãe tinha razão. Eu havia deixado que a perfeição digital me afastasse das coisas que realmente importavam. Por mais que tentasse negar, a verdade era clara: eu tinha perdido parte da essência que me tornava genuína e, neste momento, já não sabia quem era.

Decidi então fazer algo que há muito tempo não fazia: ser verdadeira, sem filtros nem edições. Peguei na minha câmara, ajustei o tripé e preparei-me para gravar aquele que seria o vídeo mais difícil da minha vida, mas também o mais necessário. Nele, pedi desculpas publicamente à colega que magoei e assumi toda a responsabilidade pelo que fiz. Aquilo não era apenas uma retratação pública para ganhar de volta a minha credibilidade, mas sim uma tentativa de me reencontrar, de recuperar algo que pensava ter perdido para sempre.

Nos dias seguintes, mantive-me afastada das redes sociais. Sentia que precisava de tempo para me reconectar com o mundo real. Fui até à casa da minha mãe, mas, mais importante, fui ao encontro do meu irmão. O irmão que sempre fora o meu porto seguro, o meu companheiro de infância, e a quem eu tanto tinha negligenciado. Quando entrei em casa, a minha mãe informou-me de que ele estava no seu quarto a estudar. Fui até lá e, ao abrir a porta, ele correu na minha direção, abraçando-me com uma alegria genuína, sem sequer pensar nas semanas que estive ausente para ele. “Estás zangado comigo?” perguntei, hesitante. Ele sorriu, um sorriso sincero, e respondeu: “Tive saudades tuas, mas agora estou feliz por teres vindo.”

Sentei-me ao lado dele, olhando o ambiente à minha volta. Foi então que vi um poster na parede: uma lembrança que tinha comprado no Jardim Zoológico, após um dia memorável que passei com ele lá há uns anos atrás. “Lembras-te?” perguntou ele. “Foi o melhor dia de sempre. Foste tu que me ofereceste este poster, para eu me lembrar sempre de ti.” E eu, com o coração apertado, sorri, sentindo que a vida me estava a dar outra chance de recomeçar, pois percebi o que realmente importava. O dinheiro, os seguidores, as viagens e as marcas… tudo isso era efémero. O que eu verdadeiramente precisava era de viver momentos como aquele, por isso decidi que, a partir daquele dia, a minha vida seria mais real, queria estar mais presente para o meu irmão, para a minha mãe, para os que realmente me amavam. A internet continuaria a fazer parte da minha vida, mas agora, eu sabia que não deveria viver a minha em função dela. Mantive as redes sociais, mas aprendi a conciliar as minhas duas vidas — a digital e a real. Com a sabedoria de quem aprendeu com os erros, passei a ser mais seletiva nas amizades, mais autêntica nas relações e, sobretudo, aprendi a cuidar de mim mesma. O meu amor pela criação de conteúdos continuou, mas agora, eu partilhava com o mundo, não o que as pessoas queriam ver, mas o que eu realmente era. A vida deixou de ser uma busca incessante por aprovação e tornou-se, finalmente, uma busca pela felicidade verdadeira — aquela que não se encontra nos likes, mas nas pequenas coisas que realmente importam.

Reflexão sobre a Leonor e a emergente alineação digital

A história de Leonor reflete um dos fenómenos mais comuns e complexos da era moderna: a alienação digital. A Leonor, tal como muitos jovens, começou a partilhar a sua vida na internet de forma espontânea e entusiasta, no entanto, à medida que os seguidores aumentavam e os elogios se multiplicavam, ela passou a confundir essa aprovação digital com validação pessoal. O mundo das redes sociais tornou-se, então, a sua principal fonte de autoestima e realização, afastando-a gradualmente das relações e experiências reais que outrora valorizava. A alienação digital manifesta-se, assim, numa profunda desconexão entre o eu verdadeiro e o eu fictício que a protagonista criou para o público.

Esta alienação digital acaba por distorcer a sua identidade, pois, ao alimentar-se apenas de validação externa, Leonor perdeu de vista os aspetos mais autênticos da sua personalidade. Tornou-se refém de uma imagem cuidadosamente construída, onde os "likes" e comentários positivos substituíram o apoio genuíno e o amor incondicional da família e amigos. Nesta alienação, a realidade foi sendo progressivamente substituída por uma versão idealizada da vida, um palco onde apenas se mostravam momentos perfeitos e onde o imperfeito era cuidadosamente evitado ou omitido.

O momento de crise na história, a publicação do vídeo com comentários desagradáveis sobre outra pessoa, serve como um "despertar" doloroso e forçado. É apenas quando a sua imagem pública cai por terra que Leonor é confrontada com as consequências do afastamento da sua essência e do abandono das relações reais. A crise virtual força-a a procurar o apoio onde ele sempre esteve, nos laços familiares que, apesar de ignorados, nunca se romperam. Neste processo, Leonor redescobre o valor dos relacionamentos que existem sem necessidade de validação externa, como o amor do seu irmão e o carinho da mãe, que a acolhe incondicionalmente.

A história de Leonor sublinha, assim, os perigos da alienação digital, onde a dependência das redes sociais acaba por engolir a individualidade e tornar a identidade uma construção artificial. Este fenómeno não afeta apenas a relação com os outros, mas também com o próprio "eu" interior, que se perde no processo. A reconexão de Leonor com a sua família e com o seu eu autêntico representa, por isso, um renascimento, uma tentativa de equilibrar a sua presença digital com o seu mundo interior e as suas relações verdadeiras. Mais do que um regresso ao “real,” é uma mensagem sobre a importância de definir as prioridades e manter a autenticidade, sobretudo num mundo onde o digital se torna cada vez mais omnipresente e sedutor.

24 de setembro de 2025
Era como se aquele simples póster fosse uma ponte para o meu passado, para a criança que eu fora, cheia de curiosidade e entusiasmo, sem preocupações para além do recreio e da próxima história que a professora ia ler-nos em voz alta. Pedi à professora para tirarmos uma fotografia juntas, ali mesmo, ao lado do póster.
17 de setembro de 2025
No dia seguinte, depois do trabalho, passei por uma pequena loja de antiguidades no centro da cidade. Entre móveis gastos e livros empoeirados, encontrei o que me pareceu um tesouro: um puzzle vintage do esqueleto humano.. Senti que aquilo podia ser a chave.
10 de setembro de 2025
O nosso primeiro beijo nasceu ali, na cozinha, entre o aroma de vinho branco a evaporar na frigideira, o tilintar distante de uma colher esquecida no balcão, e um avental com cogumelos que parecia ter sido feito de propósito para aquele momento. Foi doce, inesperado e absolutamente inevitável.
3 de setembro de 2025
Ainda hoje guardo aquela caixa metálica, cheia de lápis bonitos, não só como recordação de um objeto útil, mas como símbolo do início de uma nova fase da minha vida.
27 de agosto de 2025
Anos mais tarde, caminhando pela cidade, passei por uma loja vintage e, por acaso, reparei numa toalha na montra, era igual à da Mariana, o que me fez lembrar imediatamente daquela tarde de despedida. Todas as memórias vieram à tona, como se nunca tivessem partido.
20 de agosto de 2025
Continuei a minha viagem. Visitei cidades com nomes que nunca tinha ouvido, comi sozinha em esplanadas, andei perdida, dancei numa praça sem música, mergulhei num lago gelado, chorei sozinha num comboio e em cada lugar que me tocou, tirei da mochila um dos postais. Escrevi. Coisas pequenas.
13 de agosto de 2025
Hoje, o caderno da Matilde está guardado na minha mesa de cabeceira. Às vezes abro-o, quando me sinto longe de mim. Quando esqueço quem fui naquele verão. E cada vez que o leio, lembro-me: fomos felizes ali.
6 de agosto de 2025
E, às vezes, ainda volto a abrir a caixa onde guardei as notas aderentes daquele verão. Só para me lembrar do que sou e do que a minha mãe me ensinou, com um gesto simples e um coração cheio.
30 de julho de 2025
Quando me deitei, encontrei um postal debaixo da almofada. Era de um papel espesso, com um toque suave, como os de antigamente, com várias borboletas desenhadas em tons suaves de azul e dourado, quase a esvoaçar para fora da página. Tinha um aspeto antigo, mas lindíssimo, como se tivesse atravessado décadas só para me
23 de julho de 2025
Desfez o laço com uma curiosidade quase infantil e retirou um tubo redondo. Quando viu o que era, os olhos brilharam: um puzzle vintage, com uma ilustração delicada de flores silvestres, tudo em tons suaves e ligeiramente desbotados, como se o tempo tivesse passado por ele devagarinho. “É maravilhoso,” murmurou.
Show More