A minha avó viu-me casar!

Faltavam poucos dias para o meu casamento. A casa preparava-se para o grande dia com limpezas a fundo, pequenas remodelações, nova decoração e muita azáfama e entusiasmo. A minha mãe andava atarefada a passar a ferro os guardanapos de linho e eu… eu tentava respirar fundo entre as provas do vestido e os recados do meu pai, ao telefone com o senhor da quinta.

Estava nervosa, mas feliz.

No meio deste reboliço, a minha avó observava tudo da cadeira junto à janela — aquela que era “dela” desde que me lembro. Tinha 95 anos e os olhos ainda brilhavam como quando eu era criança e me sentava no chão a ouvir as suas histórias.

— Nem acredito que vou ver-te casar, minha menina. Já vivi muito… mas isto vai ser o melhor presente que a vida me dá — dizia-me com um sorriso, enquanto me acariciava o cabelo, como fazia quando eu era pequena.

Mas, numa dessas manhãs, acordei com passos apressados no corredor. Ouvi o murmúrio das vozes dos meus pais na cozinha, abafadas, preocupadas. Quando desci, vi a minha mãe tensa, com um ar carregado.

— A avó não passou bem esta noite. Chamámos a ambulância. Levaram-na ao hospital há pouco.

— O quê?! Mas ela estava tão bem ontem… — disse eu, ainda a tentar processar a informação.

— Foi tudo muito rápido. Estava com febre, fraquinha, sem forças nas pernas. Dizem que pode ser uma gripe. Nada de grave, mas com a idade dela...

Peguei no casaco e saí porta fora, rumo ao hospital, com o coração apertado.

Quando entrei no quarto, o cheiro a soro e o zumbido das máquinas deixaram-me nauseada. Entre camas e cortinas, lá estava ela, deitada, muito quieta, com uma mantinha cor-de-rosa a cobri-la. Abriu os olhos quando me ouviu.

— Oh, minha menina… vieste.

Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão. Estava quente, frágil.

— Vim logo que soube, avó. Como se sente?

— Como uma velha que quer estar boa até sábado. — Sorriu-me, cansada, mas ainda com humor.

Ficámos em silêncio durante uns instantes. Depois, ela virou a cabeça para mim e disse, quase num sussurro:

— Preciso que vás a casa. À gaveta da minha mesinha de cabeceira, do lado direito. Está lá uma bolsinha de pano, antiga… tem uns beija-flores desenhados. Traz-ma amanhã, sim?

Concordei, sem fazer perguntas.

— Confia em mim — murmurou ela, apertando-me a mão.

No dia seguinte, entrei no seu quarto com a bolsa nas mãos. Era uma peça linda — de tecido, com flores cor-de-rosa e beija-flores a beijá-las. Cheirava a madeira, a baunilha e… a tempo.

Ela olhou-a com ternura, como se reconhecesse ali pedaços da sua juventude. Abriu-a com cuidado, os dedos trémulos mas decididos. De lá tirou um colar de pérolas e uns brincos a condizer, pequenos, redondos, com um brilho discreto.

— Usei estas joias no dia em que me casei com o teu avô, há mais de setenta anos. Foram-me emprestadas pela minha mãe, que as recebeu da avó dela… Agora são tuas. Quero que as uses no teu casamento. Trazem sorte, amor e boas recordações.

Olhou-me nos olhos e continuou:

— Mesmo que eu não possa estar lá, estás a levar-me contigo. Estás a levar todas as mulheres que te amaram antes de saberes quem eras.

Senti um nó na garganta. Abracei-a com força.

— Eu vou usá-las, avó. Prometo.

— Vai e sê feliz, filha. Mas não te esqueças das tuas origens.

Chegou finalmente o dia do meu casamento. Vesti-me no quarto onde dormi desde pequena. A minha mãe prendeu-me o cabelo com as mãos trémulas. A minha irmã ajeitou o véu. E eu, tal como prometi à minha avó, peguei na bolsinha dos beija-flores e tirei de dentro dela o colar e os brincos que outrora lhe pertenceram.

Quando os coloquei, algo dentro de mim acalmou. Foi como se ela me sussurrasse ao ouvido que ia correr tudo bem.

E então… o momento chegou. A porta da igreja abriu-se e a música do coro começou a tocar. Respirei fundo, dei o primeiro passo com o meu pai ao meu lado… e eis que a vi.

A minha avó.

Sentada na primeira fila, com a sua manta nas pernas e lágrimas nos olhos. Estava ali. Ainda a recuperar, sim, mas ali. E era possível sentir a sua felicidade.

Os nossos olhos cruzaram-se e não dissemos nada. Não foi preciso. Só sorri, com o coração cheio.

A minha avó viu-me casar. E, naquele momento, mais do que tudo, eu soube que estava a cumprir não só um sonho meu… mas o dela também.

Nunca vou esquecer. Nunca.


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