Mais do que suficiente

Era uma manhã chuvosa de outono quando Inês chegou ao estúdio da produtora audiovisual onde trabalhava. Pairava no ar aquele aroma familiar a café, misturado com a ligeira agitação dos preparativos para o que seria um longo e derradeiro dia de audições. A equipa estava prestes a escolher os atores que dariam vida ao mais recente projeto que dirigiam, um filme que prometia ser inovador em várias frentes. Inês, diretora de casting, sentia o peso da responsabilidade sobre os seus ombros, especialmente porque os últimos dias de audições tinham sido pouco frutíferos. A qualidade dos candidatos variava, mas nada que tivesse realmente capturado a essência da obra. Sabia que as escolhas feitas naquele dia seriam decisivas para interpretarem aquela obra que tanto amava e que, de certa forma, já começava a sentir como sua.

A manhã foi marcada por um rodopio incessante de jovens candidatos a entrar e sair da sala de audições. Uns com mais talento, outros com menos, mas ninguém parecia ter o brilho especial que procuravam. A rotina instalava-se quase automaticamente: recebiam os candidatos, pediam-lhes que interpretassem o seu texto e, depois de uma breve análise, agradeciam a presença. Havia uma monotonia na sequência, algo que deixou Inês inquieta, como se estivesse a faltar emoção, aquela que só um verdadeiro talento é capaz de despertar e que tiraria todos de um certo marasmo que se instalava.

Já depois de almoço, quando o cansaço começava a dominar o ambiente, uma jovem entrou. A sua insegurança era visível à distância. Inês notou imediatamente o tremor das suas mãos e o pequeno tropeço ao atravessar a porta, um reflexo claro do seu nervosismo. De forma apressada, a rapariga largou os seus pertences no chão, tentando recompor-se enquanto respirava fundo, como se estivesse a preparar-se para enfrentar um leão naquela sala. Inês trocou olhares com os colegas, já habituados a verem o nervosismo consumir jovens artistas, mas houve algo nela que despertou a atenção de todos, algo que não conseguiam identificar de imediato.

Quando a jovem começou o seu monólogo, a magia aconteceu. Assim que as primeiras palavras saíram da sua boca, a transformação foi completa, não era a mesma pessoa que estava ali segundos antes. A timidez, que anteriormente se tinha apoderado dela como uma nuvem densa, evaporou-se num instante, revelando uma mulher forte, intensa e cheia de confiança. O seu controle da cena era impressionante, o seu corpo, antes tão inseguro, movia-se agora com uma fluidez fascinante, os gestos carregados de significado, como se a sua interpretação fosse uma dança entre as palavras e a emoção que transmitia. Toda a sala foi subitamente transportada para fora daquele pequeno estúdio; parecia que, por breves momentos, estavam a viver dentro do próprio filme que desejavam criar.

Quando a jovem terminou a sua performance, o silêncio que se seguiu foi profundo e pesado, tal era a intensidade do que haviam acabado de presenciar. Ela, no entanto, rapidamente voltou à sua postura inicial, reservada e encolhida. Antes que alguém pudesse reagir, começou a pedir desculpa, convencida de que não tinha estado à altura daquilo que era esperado. Pegou apressadamente nos seus pertences e, sem dar tempo a ninguém para falar, saiu pela porta. Inês ainda tentou dizer algo, mas foi como se todos estivessem a despertar de um sonho — um sonho breve e arrebatador. A jovem desapareceu tão rapidamente quanto tinha entrado, deixando a sala num estado de estupefação.

As audições continuaram, mas a magia daquele momento não voltou a repetir-se. Outros candidatos passaram, alguns competentes, mas nada que chegasse perto da profundidade e da entrega que aquela rapariga havia mostrado. Inês sabia, sem sombra de dúvida, que ela era especial, mesmo que a própria jovem não fosse capaz de o reconhecer.

No final do dia, já exausta e com a cabeça a fervilhar de imagens, vozes e emoções, Inês começou a arrumar as suas coisas. O único desejo que a consumia era o de voltar para casa e descansar. Contudo, enquanto recolhia os papéis que se tinham espalhado pela mesa ao longo do dia, algo no chão chamou a sua atenção: um pequeno caderno. A capa era vintage, decorada com abelhas, e o seu aspeto peculiar despertou a sua curiosidade. Abaixou-se para o apanhar e, ao abri-lo, foi imediatamente arrebatada pelo seu conteúdo. As páginas estavam repletas de poemas, pensamentos soltos e pequenas canções, tudo escrito à mão, com uma sensibilidade única, quase palpável. Era como se cada palavra tivesse sido desenhada com a mesma delicadeza com que se tece um bordado.

Ao folhear mais algumas páginas, Inês encontrou o nome da autora, assinado no final de um dos textos: era o mesmo nome da rapariga que tinha encantado a equipa com a sua atuação. Ficou sem palavras. Não só aquela jovem tinha um talento extraordinário para a interpretação, mas também para a escrita. Os versos eram arte pura, delicada, autêntica, de uma beleza rara. A descoberta deixou Inês sem dúvidas: aquela rapariga tinha de fazer parte do projeto.

No dia seguinte, durante a reunião da equipa, a decisão foi unânime, a escolha dela tornou-se inevitável, e Inês teve o privilégio de ser a primeira a contactá-la. Usou o pretexto de devolver o caderno esquecido para marcar um encontro. Quando se encontraram, a jovem parecia ainda mais tímida do que no dia anterior, a insegurança estampada no rosto. Com o caderno nas mãos, Inês olhou-a nos olhos e deu-lhe a notícia: ela tinha sido escolhida para o papel. A rapariga ficou imóvel, estática por alguns segundos, incapaz de acreditar no que ouvia.

— Eu? — murmurou, incrédula. — Nunca pensei que fosse suficientemente boa para este projeto...Não acho que tenha muito jeito, a minha mãe é que me incentivou a vir… Eu só escrevo e faço estas coisas para mim…

Inês sorriu, entregando-lhe o caderno com carinho. "O que tens aqui e o que nos mostraste ontem provam que és mais do que suficiente", disse, num tom caloroso e afetuoso. "O teu talento não deve ser escondido do mundo."

A jovem, ainda a processar a notícia, abraçou o caderno com força. Os seus olhos brilharam com uma emoção contida, e, sem dizer mais nada, agradeceu e saiu a correr. Queria, sem dúvida, partilhar a novidade com a sua mãe, a primeira pessoa a quem desejava contar aquele momento de felicidade.

Inês ficou a observar enquanto a rapariga se afastava, sentindo uma satisfação profunda. Sabia que tinha acabado de mudar o destino daquela jovem artista, mas também sentia que o mundo das artes acabava de ganhar alguém que, quase magicamente, o iria transformar para sempre.

Reflexão sobre a síndrome do impostor

A síndrome do impostor é um fenómeno psicológico que afeta pessoas talentosas e competentes, levando-as a acreditarem que não são dignas do sucesso que alcançaram. Sentem-se como fraudes, temendo constantemente que, a qualquer momento, os outros descubram que, afinal, não são assim tão capazes como aparentam ser. Esta sensação é muitas vezes acompanhada por uma incapacidade de aceitar elogios ou reconhecer os próprios méritos, independentemente das conquistas que a pessoa tenha acumulado ao longo do tempo.

No contexto do trabalho ou da criação artística, a síndrome do impostor manifesta-se quando, apesar de evidências claras de talento ou competência, o indivíduo continua a questionar o seu valor, atribuindo os seus sucessos a sorte, coincidência, ou a um erro que eventualmente será descoberto. Há uma crença interior enraizada de que não se é "bom o suficiente", o que gera uma ansiedade persistente e uma autocrítica feroz.

Este fenómeno não distingue áreas de atuação — pode afetar artistas, profissionais de qualquer setor, académicos e até pessoas que desempenham tarefas domésticas. Curiosamente, as pessoas mais propensas a este sentimento são, muitas vezes, aquelas que se destacam pelo seu alto desempenho e perfeccionismo. Estas pessoas colocam padrões irrealisticamente altos para si mesmas e, mesmo quando os atingem, tendem a minimizar o esforço envolvido, acreditando que qualquer outra pessoa teria conseguido o mesmo ou melhor.

A síndrome do impostor revela uma desconexão entre a perceção interna e a realidade externa. Embora seja natural duvidar de si mesmo em momentos de incerteza, o problema surge quando essa dúvida se transforma numa crença constante de inadequação, que pode limitar o crescimento pessoal e profissional. Muitas vezes, isso leva as pessoas a evitarem desafios ou a hesitarem em aceitar novas oportunidades, por receio de falhar ou de "serem descobertas".

Superar esta sensação envolve, antes de mais, tomar consciência de que ele existe e que não define quem somos. É importante reconhecer as próprias capacidades e aprender a validar os nossos sucessos com a mesma objetividade com que os outros o fazem. Praticar a autocompaixão, aceitar elogios genuínos e perceber que a perfeição é inalcançável são passos essenciais para desfazer esta falsa narrativa.

30 de abril de 2025
Já instalada na minha nova vida italiana, um dia estava a passear pelas ruelas do centro quando vi uma pequena loja de artigos vintage e entrei sem pensar. Lá dentro, numa prateleira de madeira envelhecida, vi um mini puzzle com uma ilustração vintage de várias borboletas.
23 de abril de 2025
Havia algo especial nela, dentro da sua mala, havia sempre uma bolsa, mas não uma qualquer, era vintage, de tecido encorpado, coberto por flores em tons antigos, como se tivesse sido arrancado de uma ilustração botânica de uma enciclopédia esquecida no sótão de uma casa senhorial.
16 de abril de 2025
Lá no fundo, vi a minha tote bag preferida, aquela que usava quando saía sozinha, antes de me moldar para agradar aos outros. Peguei nela, coloquei lá um livro que andava a adiar ler há meses, um caderno e uma caneta, os meus fones, toalha, protetor solar e alguma comida e fui até à praia.
9 de abril de 2025
Passei por uma papelaria na Baixa e, na montra, reparei num caderno com uma capa ilustrada com gatos. Havia qualquer coisa nele que me chamou. Entrei, determinada. “Posso ver aquele caderno dos gatos que está na montra?”, perguntei à funcionária. “Claro que sim!”, respondeu com um sorriso. “Esse é novo por aqui, mas a marca tem modelos lindíssimos. Quer que lhe mostre mais?”
22 de março de 2025
Decidi emoldurá-lo e dar-lhe o destaque que merecia, numa das paredes da casa! Enquanto o preparava, reparei que no verso havia algo escrito. As letras estavam ligeiramente desbotadas, como se tivessem sido impressas há décadas, mas ainda perfeitamente legíveis: "Momentos captados pelas câmaras perpetuam no tempo! Dentro do baú, há uma caixa repleta de memórias que nunca ficarão esquecidas."
19 de março de 2025
Na cozinha, o meu pai reina. Adora cozinhar e experimenta receitas novas com o entusiasmo de um chef Michelin. Usa sempre um avental com cogumelos que lhe ofereci no aniversário, numa loja de artigo vintage, como ele.
5 de março de 2025
Descobri que às vezes, a felicidade está nos gestos simples. E que, de certa forma, todos estamos a tentar montar o puzzle da nossa própria vida — uma peça de cada vez, contudo quando o fazemos acompanhados, o caminho torna-se mais leve, e as imagens, mais bonitas.
26 de fevereiro de 2025
Rasguei o canto do envelope com cuidado, puxando o seu interior para fora. Um lápis caiu para o chão, antigo, com a madeira gasta e a ponta arredondada. Peguei nele e virei-o devagar. Na lateral, o nome "Beatriz" estava escrito a caneta, as letras quase apagadas pelo uso.
Postais de S. Valentim da Cavallini
12 de fevereiro de 2025
Desde pequena que sempre gostei de guardar e colecionar pequenas coisas, desde pedaços de papel, fotografias, bilhetes de cinema, conchas apanhadas na praia, a cartas nunca enviadas.
Flores e bloco de notas aderentes com flores da Cavallini
5 de fevereiro de 2025
Agora é o momento certo! Já há alguns dias que parecia que nada corria bem. O cansaço acumulado pesava-me nos ombros, e a sensação de impotência começava a sufocar-me.
Show More